Se olhares para ela, percebes que faz as malas. Devagar. Sem dramas ou hesitações, como quem já definiu um itinerário. Se olhares para ela, percebes que já não te ouve nem te vê, percebes que passou para lá das últimas tentativas de te chamar e, por mais que procures na memória, não consegues distinguir quando foi exatamente que se deu essa transformação. A mulher que tens à tua frente sabe o teu nome, sabe várias coisas sobre ti, mas desistiu de te chamar. Está infinitamente mais longe de ti do que uma estranha. Não saberias o que fazer para a alcançar se o quisesses, mas nem mesmo sabes se o queres. Deixa estar. Não faças nada. Não atrapalhes. Havia tantas coisas que poderias ter feito e não fizeste. Antes. Ela mesma as pedia, sugeria. No limite no desespero: um rasgão no colete de forças da rotina, a infantilidade de um anel no dedo, uma viagem propositadamente para ir ver aquela exposição. No limite do desespero, porque havia coisas que não deviam ser pedidas, deviam ser pressentidas, adivinhadas, essa magia. E esses pedidos, mesmo quando vagamente atendidos, tinham sempre a aparência de um remendo de pontos tortos. E houve também tudo o que nunca aconteceu. Agora ela vai, vês? Vai, de encontro ao seu silêncio e às suas viagens. Tem no dedo o anel que ela mesma (tu nunca) comprou, essa decisão. Os seus sonhos são mais livres do que nunca, porque já não esperam por ti. É agora que acontece, vês? Enquanto te pergunta o que queres para almoçar e dispõe a louça sobre a mesa da cozinha. Se olhares para ela, verás que ela já não está aí, mas não, tu não olhas.
*
**