David Hockney, Felled Totem I, 2009
A CÓLERA DIVINA
Quando fui ferida,
por Deus, pelo diabo, ou por mim mesma,
— ainda não sei —
percebi que não morrera, após três dias,
ao rever pardais
e moitinhas de trevo.
Quando era jovem,
só estes passarinhos,
estas folhinhas bastavam
para eu cantar louvores,
dedicar óperas ao Rei.
Mas um cachorro batido
demora um pouco a latir,
a festejar seu dono
— ele, um bicho que não é gente —
tanto mais eu que posso perguntar:
por que razão me bates?
Por isso, apesar dos pardais e das reviçosas folhinhas
uma tênue sombra ainda cobre meu espírito.
Quem me feriu perdoe-me.
Adélia Prado (2003), Com Licença Poética — Antologia. Lisboa: Cotovia, p. 71.