Não estava numa pilha, estava arrumadinho na estante, que nem sempre o que está arrumado está esquecido e nem sempre o que está em pilhas mais ou menos desequilibradas é o que fica mais perto de nós:
INTRODUÇÃO AO TEMPO
I
Façamos greve de tempo
De pulmões castos não respiremos
As folhas trágicas veias
podem cair
Fechemos os olhos dentro
Silente na rocha amarga
o sulco humilde de nós
II
quando o sonho for granito
quando o mar em cinza desvendar
as plumas inúteis das gaivotas
quando a espuma depuser velas
longínquas sobre a areia
e das pontes cair o derradeiro homem
quando as papoilas tiverem searas
as janelas absortas mortalhas de luz
quando nós formos outrora
quando o luto marcar as ancas verdadeiras
III
Porque ficou oceânico
o escasso momento de nós?
Escorríamos pelas mãos
insatisfeitas e límpidas
nascentes
no ar um tempo frustre
a sequência dos sons
perdidos nos degraus
Simples é a dor
e nós, nascidos
*
A distância é cava
senão cova Escava
Os pais vigiam
dentro de um veio
no seio da terra
E os avós são reis
por detrás de um vidro
Do açúcar vem-lhes
a textura doce
mais antigos
mortos do que nós
mais vivos mais sós
como se fosse um acidente
o pó
*
Nós, que medimos a morte,
não entramos de roldão desassossegando
o mundo. Alimentamo-nos de seres
menores
néos macios controlados
por ogres, bolas de sabão
que em silêncio estoiram.
E às jazidas do sémens, ao tenro veio da
madre
século após século retornamos.
Luiza Neto Jorge (2001), Poesia. Lisboa: Assírio & Alvim. PP. 27-28, 72, 232.