A Mulher Nua, Manuel Poppe, Editorial Teorema, 1997, 80 pp.
Não é uma história extraordinária, é uma história de amor. Quem o diz, embora não exactamente por estas palavras é Greta, a mulher nua da novela de Manuel Poppe, publicada na Editorial Teorema há uns 12 anos. Não é uma história extraordinária, é dito a duas páginas do fim, quando já sei que não é uma história extraordinária, mas simplesmente uma história de amor. Quando já sei que é uma história extraordinária.
Uma história que começa numa madrugada de Inverno, em Veneza, quando as águas estão geladas e as ruas desertas. Giacomo acorda e, no exterior, agarrada à janela, está uma mulher nua, agarrada ao vidro, os joelhos no parapeito. «A esta hora! Às cinco da manhã!», diz ele, e quase sou levada a pensar que o único ponto insólito da situação é o horário em que acontece. Se em vez de suceder às cinco da manhã, sucedesse às seis ou mesmo às quatro, talvez a cena passasse por vulgar e não houvesse lugar para o espanto. É uma história de amor, já o disse, e as histórias de amor precisam destas coisas. É espantoso acordar e ter uma mulher nua à janela, mas ainda mais se isso acontecer às cinco da manhã e não a outra hora. Porque todas as histórias de amor começam com(o) uma revelação e toda a revelação precisa de um momento exacto em que acontece.
E todas as histórias de amor começam com um encontro entre dois estranhos, por isso não me surpreende que Giacomo tenha convidado Greta a entrar, mas nesta altura ainda ele não decidiu que ela se chama Greta. Por esta altura, Giacomo sabe apenas que lá fora está frio e que esta mulher está nua e é linda. Tão bela que não pode pertencer ao mundo a que as pessoas comuns estão habituadas, e como tudo o que nos foge ou é divino ou selvagem (e haverá — diferença — entre uma coisa e outra?), quando ele lhe observa «os olhos de pássaro, as penas, a maneira desajeitada de se enrolar» (p. 11) retira a única conclusão possível: «era um bicho, não havia dúvida» (p.11). Também aqui não há nada de extraordinário. Qualquer história de amor envolve o encontro com o desconhecido, venha ele da Suécia ou seja o nosso vizinho de toda a vida.
Greta veio do céu. Neste momento, como já sei da existência de penas, é quase inevitável não me lembrar de uma deixa de engate muito gasta que alguns meninos ainda usam com algumas meninas («Quando é que tu caíste do céu?») e temo pela continuação da novela, mas por pouco tempo, porque, poucas frases à frente, Greta diz ter vindo da Suécia e um pouco depois, por Giacomo lhe dizer que tem de se vestir com a roupa das pessoas, ela pergunta-lhe se ele quer que ela seja uma pessoa (p. 14).
De facto, se alguns momentos de descrição, de narração e até de diálogos tanto poderiam estar nesta história como noutra (porque todas as histórias se repetem um pouco entre si), há momentos de uma enorme precisão, como estas três falas da páginas 14 e 15:
«— Queres que eu seja uma pessoa?
— Não és?
Ela sorriu e chegou as mãos para o lume.
— Se tiver de ser.»
É um momento essencial não só para acentuar a estranheza da personagem (que talvez não seja uma pessoa) como também uma certa disposição da personagem feminina para a sua própria submissão que será uma pessoa se tiver de ser. (Submissão ou aceitação a uma certa noção de fatalidade?) É como se ela tivesse surgido da e para a vontade da personagem masculina. Inclusive, é ele quem, na página 15, lhe atribui o nome:
«— Como te chamas?
— Giacomo. Giacomo Zurlini. E tu?
Ela hesitou.
— Não sei…
— Greta?
— Greta? Sim… Greta.»
O objecto do nosso desejo é sempre construído por nós, a partir do que tivemos e perdemos ou do que nunca conseguimos e ainda assim desejamos. Neste caso, «o sorriso dela… lembrava a sua [dele] vida» (p. 45). Para além disto, esta novela inscreve-se num plano onírico. A situação inicial dá-se às cinco da manhã, se bem se lembram. Pode ser um sonho. Será um sonho? Não sei. Continuo a ler e é e não é um sonho. Giacomo é um pintor frustrado, desiludido com a vida e cansado das pessoas, «sempre detestara as pessoas insossas, a protegerem-se, a cuidarem-se, e sem darem nada» (p. 26). Ia acrescentar que Giacomo é um desencantado, mas seria uma má avaliação da minha parte. Alguém desencantado não abre assim a janela a quem acabou de cair do céu e não teme que esse ser possa partir. Alguém desencantado não tece considerações como as que se apresentam na página 44: «Tudo era natural. Aquela mulher nua, a arranhar à janela. Ouvia as vozes ao fundo. Via os vidros embaciados e a rua deserta, a luz branca. Sentia-se bem. “Por que perguntas? Há muito que deixaste de querer perguntar. Se perguntares, só te magoas. Que importam os outros? Que importa o resto? Não te metas nisso!” E, de repente, percebeu que já estava metido.» Como em qualquer história de amor, quando começas a recear envolver-te é porque pelo menos parte de ti já se envolveu. Também não há nada de extraordinário nisto.
Greta, que talvez nem seja humana, ou talvez mais humana do que a maioria dos humanos, que será uma pessoa se tiver de ser, é «uma mulher meiga, desamparada e uma mulher dura, ausente» (p. 56), uma pessoa a quem Giacomo se habitua, mas ainda assim uma pessoa a mais (p.50), uma mulher quase igual às outras (que as outras não se dão como ela se dá), uma mulher nua, indefesa (p. 63), uma mulher que talvez nem lhe venha a fazer grande falta, ela é no entanto uma mulher que lhe foge, um «um bicho que o roía por dentro» (p. 67). Giacomo procura-a por toda a cidade e encontra-a.
Ela é uma mulher que se deixa encontrar: «Deste-me tudo o que tinhas para dar. E ias-me pedindo… Que eu fosse a tua mulher, a tua companheira… Julgas que não percebi? Eras claro: querias. O quê? Alguém que te aquecesse. Tinhas tanto para dar, meu amor! E eu, que vinha lá de cima, percebi isso. Mas, havia outras coisas, antes! Cisnes, pássaros, nuvens, que me acompanharam… Tu fechavas-me e tive medo.» (pp. 70-71). Greta queima as suas asas. Ela é um cisne que será uma pessoa se tiver de ser. E tem de ser, porque ela assim o quer. Abdica da sua condição dura e ausente. Ela resigna-se, mas também elege, e não me apetece agora fazer uma análise à luz dos estereótipos de género. Não é nada de extraordinário, é só uma história de amor.
Desde as lendas célticas ao Lago dos Cisnes de Thaickovsky, há notícia das donzelas cisnes se cruzarem com os homens. Nas primeiras, elas estão sujeitas a serem encontradas por um homem que lhes roube o manto, sem o qual elas não podem partir, obrigando-as assim a serem esposas e mães submissas, até ao momento em que elas descobrem onde o manto está escondido … No Lago dos Cisnes, há uma princesa transformada em cisne e só quem a amar poderá quebrar o feitiço de modo a que ela recupere a forma humana… Em A Mulher Nua temos talvez um sonho, um devaneio de Giacomo, até porque os artistas são assim, «doidos, diferentes» (p. 27), enfim, uma dessas coisas nada extraordinárias que podem acontecer a qualquer um, uma história de amor entre uma mulher nua e um homem que não há-se estar mais vestido, entendendo-se aqui a nudez como a ausência de máscara essencial à re(ve)lação. Quanto a mim, mesmo duvidando de expressões como «és a mulher da minha vida» e «és o homem da minha vida» (p.74), lembro-me de que se trata de uma história de amor e fico a desejar-lhes que sejam felizes para sempre. Fico a desejar-lhes um sonho feliz para sempre.