A noite passada sonhei que dois cães me mordiam as mãos. Não é frequente lembrar-me dos sonhos, pelo que lembrar-me deste me incomoda. Não sei como me deparei como eles, não sei se fui ao encontro deles, se vieram eles ao meu. Não recordo sequer um espaço definido onde aconteceu. Eram dois cães, grandes. Boxers. Tenho a sensação de que havia uma pessoa que os acompanhava, mas não estou segura. Dos cães, sim, lembro-me. E das minhas mãos nas suas bocas. Não sei como foi. Talvez eu tenha partido do pressuposto de que não me fariam mal, tenha sido demasiado confiante, e tenha avançado as mãos para eles. Ou talvez tenha sentido medo e não o tenha sabido disfarçar, como se diz que é suposto fazer quando não queremos que os cães nos ataquem. Sim, havia uma pessoa com os cães, alguém a quem eles obedeceriam e que nada terá feito para evitar o que sucedeu. Num dado momento, a boca de um dos cães envolveu a minha mão esquerda quase até ao pulso. A minha primeira sensação foi de algum conforto e protecção, suponho que porque nesta altura do ano as mãos tendem a arrefecer e a boca do cão era morna e íntima. Sim, havia alguém com os cães, não sei quem, uma presença, uma forma antropomórfica que poderia ser qualquer pessoa, que me instava a deixar que o outro cão fizesse o mesmo com a minha mão direita, que seria igualmente bom, não haveria mal. Sim. Aqui, não sei, parece-me que hesitei, que dirigi a minha mão para o outro cão e, ao vê-lo avançar a boca, temi e recuei. Fiquei com os seus dentes fincados a meio da mão, magoavam-me os dedos. Então, não sei se por eu não ter confiado no segundo cão, a boca do primeiro aumentou a pressão na minha outra mão. À dor aguda e imediata da mão direita, seguiu-se a dor crescente da mão esquerda. Não sei se a pessoa que acompanhava os cães nada podia fazer para me ajudar, uma vez que eu tinha falhado o teste – ocorre-me agora que talvez fosse uma espécie de teste –, ou se podia, mas não queria. Sei que as minhas mãos presas me pesavam e doíam. Sei que acordei antes que os cães tivessem libertado a pressão das suas bocas e, ainda agora, sinto a mão esquerda mais quente do que a direita. E apetece-me pedir à pessoa do meu sonho, fosse quem fosse, se ainda lá estiver, make it go away.
quinta-feira, 16 de outubro de 2008
25 de Abril de 1974
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